quarta-feira

O Anjo Pornográfico, de Ruy Castro (Ed. Cia das Letras)



Um trecho, entrecortado, de um momento emocionante do livro sobre a vida desse homem controverso, mas indiscutivelmente talentoso, Nelson Rodrigues.


"Duas horas depois, a peça chegou ao fim. Na fala final, Lúcia pediu: "O buquê". Caiu o pano. Silêncio total na platéia - e pânico em surdina nos bastidores durante uma aparente eternidade. Era para subir o pano? Ninguém sabia. Ziembinski esperava, respirando grosso. "Eles não gostaram!", sussurrou Stella para Evangelina. Mal acabou de dizer isso, ouviram palmas esparsas. Outras palmas se juntaram e, de repente, num crescendo, transformaram-se numa ovação, como se só então a platéia tivesse sido sacudida de um torpor. Era assustador. Ziembinski mandou subir o pano enquanto gritava palavrões em polonês. Os atores surgiram e o aplauso foi ensurdecedor. O elenco ia e vinha, e as palmas não paravam. Ziembinski também apareceu e o teatro delirou. (...)
(...) Depois de praticamente inventar o teatro brasileiro, o autor de "Vestido de Noiva" viu-se na Avenida Rio Branco, escura e deserta, caminhando feito um zumbi em direção à leiteria "Palmira", no largo da Carioca. Ele, sua mulher, sua cunhada Julieta e sua sogra foram comer o "jantar Avenida" da leiteria: bife, batata frita e dois ovos. O resto do elenco fora comemorar na chique sorveteria "A Brasileira", na Cinelândia.
E sabe por que Nelson não foi com os outros para "A Brasileira"? Porque não tinha dinheiro.
Não lhe faltaria, evidentemente, quem disputasse a primazia de pagar por ele. Mas, naquele momento, ainda não se dera conta de que, fechando o pano de "Vestido de Noiva", ele deixara de ser o miserável que se tornara desde a morte de Roberto.
A morte de Roberto. Quando Nelson pegou o bonde de volta para a praça da Bandeira, já eram quase duas da manhã de 29 de dezembro de 1943. Sem tirar nem pôr - nem um dia, nem uma hora, talvez nem um minuto -, completavam-se catorze anos que seu irmão morrera.
Como um eterno retorno, uma nova vida começava naquele exato momento."

segunda-feira

La piel que habito, 2011 de Pedro Almodóvar



Quando um diretor de cinema tem uma maneira peculiar de filmar, quando tem traços característicos demais na composição do seu filme como um todo, quando tem uma direção de arte arrojada, onde detectamos sua mão a quilômetros de distância, fica difícil de absorver quando ele resolve mudar tudo. Ou melhor, resolve mudar muito.
Almodóvar mudou muito. Ainda que o roteiro tenha tudo de Almodóvar, sim o roteiro é a cara dele, a linguagem mudou. A direção de arte tomou outro rumo. O que vemos na tela é clean, a não ser 'no mundo do brechó', vemos aquelas cores fortes, da alma espanhola bem almodovariana apenas nos detalhes. Nos quadros na parede da casa de Antonio Banderas, nos livros que lê, na fantasia de tigre (aliás aquele personagem é típico), são só pitadas de todo aquele visual over que tanto lhe é característico, e que tanto amamos por esses anos todos.
O roteiro? Almodóvar mais maduro, mas sempre Almodóvar. Uma reflexão sobre aonde podemos chegar com a ciência, e se o homem está preparado de fato para ela. Vale tudo para obter nossas respostas?
O sexo, sempre presente na mensagem subliminar dos filmes do diretor está bem mais despudorado. Os Édipos e Electras estão mais óbvios. Ele deixa para trás aquela abordagem dos tabus contidos, como se escancarar aquele sentimento fosse proibido. O drama tragi-cômico deu lugar para o suspense, mas do mesmo jeito, tensos, não conseguimos tirar os olhos da tela.
Acho que toda essa mudança dá uma nova perspectiva para o cinema do diretor. Bom ou ruim? Não sei, com certeza uma nova fase. De modo geral, saí do cinema me perguntando: será que daqui para frente ainda vamos conseguir bater o olho em um filme e poder afirmar, sem dúvida, que é um filme de Pedro Almodóvar?

sexta-feira

Casados com Paris, de Paula McLAin (Ed. Nova Fronteira)



Andei um tempo sem palavras para escrever sobre Casados com Paris. Tenho tanto fascínio pela Paris dos anos 20 depois que li Têt-a-Têt. Ultimamente, filme do Woody Allen, O que falta ao tempo, em seguida o incrível retrato dessa geração. Preciso ter novamente 20 anos, arrumar a mochila e ir estudar na Sorbonne!
Nesse livrinho danado de bom vivemos um pouco da vida da geração perdida. Vamos vendo se criar a relação de Ernest Hemingway com sua primeira mulher, a mais importante mulher da sua vida. Quem ele realmente amou e precisou ter do lado para conseguir existir como escritor, conseguir ser quem sonhava ser. Alí a gente vê o pobre homem buscando na mulher, a mãe para conseguir se erguer. Sabe aquele clichê de todos os clichês, de que por trás de um grande homem existe uma grande mulher? Também cabe.
Hadley deixou o escritor vir à tona, criou o homem no sentido maternal mesmo. Amou, cedeu, viveu em função do amor.  Mil Simones de Beauvoir não dão uma Hadley Richardson no que diz respeito à sucumbir ao talento e presença avassaladora de um homem com uma personalidade como a de Hemingway.
A geração dos anos 20, que se formou em volta daquela cidade boêmia, a famosa geração dos americanos perdidos em Paris no auge da efervescente literatura é sedutora. Conheci melhor o casal Zelda e Scott Fitzgerald aqui do que em sou próprio livro Alabama Song. Um casal completamente excêntrico, diga-se de passagem. Era uma turma de amigos interessantíssima, com papos intelectualmente excitantes. Enorme quantidade de bebida, cigarro, absinto, ópio, tudo o que o início de um século, vindo de uma guerra podia proporcionar. Cabeças pensantes querendo basicamente viver e se divertir.
Mas como tudo nessa vida é uma faca de dois gumes, quem tivesse um pouco mais de consciência moral, ou caretice como podia ser visto naquela época, sofria desesperadamente com as consequências daquele estilo de vida.
Hadley não pôde. Deu toda a estrutura emocional que seu marido precisava enquanto escrevia, mas não conseguiu acompanhar a avalanche que veio junto com todo aquele talento. Hemingway foi brilhante, apesar de difícil. Sim, um homem admirável, sedutor, e indomável! Em algum momento da vida, Ezra Pound pede, em outras palavras, para Hadley nunca tentar aprisionar o cavalo selvagem que era seu marido. Ela diz que gosta dele exatamente como ele é. Só depois de muitos anos ela entende o que o amigo estava querendo lhe dizer.
Não conhecia a história do escritor, foi difícil terminar o livro. Me vi chorando na madrugada silenciosa, completamente envolvida e chocada com as últimas páginas. Não que elas carregassem acontecimentos mirabolantes, mas pela sinceridade dilaceradora com que a autora pontua o destino dos seus personagens.
Mas como a própria Hadley diz, eles tiveram o melhor um do outro. Ela obteve o melhor daquele homem. O que viveram juntos com certeza transformou aquela mulher para o resto da vida.
O livro foi escrito depois de uma longa pesquisa de Paula McLain sobre a vida daquelas pessoas, bem como as cartas escritas pelo casal na época. Ela retrata o cenário da cidade luz com precisão, descrevendo a boemia parisiense, quem podia ser visto com frequência pelo Dôme ou pelo Rotonde, descreve o próprio Ernest se rendendo àqueles cafés tão popularesComo se vê, mais uma apaixonada pela geração perdida daquela Paris dos loucos anos 20.


Trechos da obra...

"Eu teria saído feliz da minha pele naquela noite e entrado na dele, porque eu acreditava que era aquele o significado do amor. Não tínhamos acabado de desfalecer um dentro do outro, até que não houvesse diferença entre nós?
A lição mais difícil do meu casamento foi descobrir a falha desse pensamento. Eu não conseguia alcançar todas as partes de Ernest, e ele não queria que eu o fizesse. Ele precisava de mim para se sentir seguro e apoiado, sim, da mesma maneira que eu precisava dele. Mas ele também gostava de poder desaparecer dentro do seu trabalho, longe de mim. E voltar quando quisesse." (pag 69)

"Ele tinha razão. Inúmeras vezes eu jurara nunca me atravessar diante do seu trabalho, sobretudo quando estávamos apenas começando, quando eu via a carreira dele como minha e acreditava ser meu papel ou até meu destino ajudá-lo a abrir caminho. Mas cada vez mais eu compreendia que não sabia o que realmente significavam aquelas promessas. Parte de mim o queria tão infeliz quanto eu. Talvez assim ele cedesse e ficasse." (pag 125)

"- Um conto - disse ele - para cada coisa que sei. Que sei de verdade, em meus ossos e minhas entranhas.
Quando ele falou isso, perguntei-me o que eu sabia de verdade, do jeito que ele queria dizer, e só consegui responder com Ernest e Bumby, nossa vida juntos. Era uma idéia vergonhosamente ultrapassada, eu sabia, e, se a tivesse confessado a qualquer mulher em qualquer café de Montparnasse, teria sido motivo de riso pelas ruas. Esperava-se que eu tivesse minhas própria idéias e ambições e que fosse inacreditavelmente sedenta de experiências e novidades de todo tipo. Mas eu não estava sedenta, estava satisfeita." (pag 188)

quinta-feira

O Palhaço, 2011 de Selton Melo



Sutil. Palavra que encontrei para descrever o novo filme do Selton Melo. Adoro os bastidores do mundo do circo, mas aquele circo mambembe, que perambula em busca de público, pra quem mostrar sua arte. E aí, por trás de todo aquele espetáculo existe a vida real, logo atrás da lona, a labuta desses artistas. Selton, o palhaço do circo, vive sem encontrar muita graça na vida que vive, não vê muito sentido em fazer todo mundo rir quando ele próprio vive triste, achando que precisa trazer o problema de todos nas costas. Foi preciso se afastar, desistir daquela vida. Quando foi embora se aceitou. E quando se aceitou, percebeu que os problemas da vida acabam se resolvendo de alguma forma.
Na época dos roteiros elaborados fica um espaço para o filme do Selton, falar de aceitação quando a sociedade está colocando a individualidade em extinção é um bom momento, os jovens saem da adolescência impregnados pelo sentimento de pertencer e assim permanecem, vivendo vidas de guetos, blocos, com pensamentos e atitudes relativas ao que convém a maioria. Um assunto para outra hora...
Voltando ao longa, a caracterização dos personagens está extremamente bem feita, uma luz sépia dá o tom da vegetação e poeira dos caminhos por onde andavam. Gosto muito das câmeras do novo cineasta. Inusitadas, detalhes para depois revelar o todo, planos gerais bem enquadrados, mas tudo sem muita afetação, servindo apenas para contar uma história.
E gosto mesmo do filme quando o palhaço se aceita, percebe que é bom viver de fazer os outros rirem, descobre o valor que tem ali e gosta do que vê. "O gato bebe leite, o rato come queijo e eu sou palhaço". Sim, existem coisas que nascemos para fazer, queiramos nós ou não.

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