segunda-feira

O que falta ao tempo, de Ángela Becerra ( Ed. Suma de Letras)



O que falta ao tempo é o meu livro mais artístico e poético dos últimos tempos. Fazia tempo que não lia um romance com tanta poesia. Poesia na escrita, poesia na magia e mistério que ronda cada página desde o começo. É um livro que desperta os sentimentos, desde a emoção mais sublime, até a raiva da paixão impossível do pintor pela aluna. Em alguns momentos você odeia Cádiz, por sua postura arrogante, de pintor máximo de um estilo próprio, querendo evitar a paixão que sentia, e fazer dessa energia que vinha da sua paixão o estímulo para pintar seus quadros, enquanto está no auge de uma crise criativa. Em outros, você odeia Mazarine, pelo pouco amor próprio e a incapacidade de se deixar amar por quem deveria. As vezes você odeia tanto as atitudes de um, que chega a dizer que o livro é ruim, que os personagens são idiotas, depois você apaixona de novo. Não pára de ler.
A autora, Ángela Becerra é colombiana, o que me dá mais motivos para confirmar minha teoria de que escritores que falam o espanhol têm fogo nas entranhas. Pedro Juan Gutierrez, Carlos Ruiz Zafon, Mário Vargas Llosa e tantos outros têm alguma coisa de passional, escrevem histórias relevantes. Seus personagens têm dramas intensos, são complexos, bem construídos, devem povoar a vida dos seus autores durante o processo de escrita, e provavelmente vão fazer parte deles para sempre de tão vívidos. Como diz a própria Becerra - verdade e ficção se misturaram tanto nessa história que é até possível que, passeando pelas ruas de pedra do Quartier Latin num gelado dia parisiense, você se depare com uma linda jovem caminhando descalça e arrastando um longo casaco preto, enquanto centenas de espigas de lavanda florescem sob seus passos. Outra característica desses autores? sua literatura tem peculiaridades, como um cemitério de livros esquecidos, ou mulheres que guardam segredos inconfessáveis, uma menina que tem o hábito de andar descalça pelas ruas, o que faz esses romances ainda mais instigantes.
Aqui, são muitas histórias dentro de uma grande história, compreendemos o porque da relação desgastada do pintor e da famosa fotógrafa com quem se casou e teve um filho. Um casal que viveu o mundo das artes com corpo, mente e alma e agora precisam conviver com as colheitas das escolha que fizeram. O filho desse casamento é um psicanalista comprometido com o trabalho, que procurou na universidade e depois na profissão o entendimento para a falta dos seus pais na sua vida, e quer entender como a falta da mãe pôde interferir de alguma maneira nos seus relacionamentos com as mulheres.
Paralelamente a tudo isso, a autora vai buscar na Santa Inquisição, os motivos para o corpo de uma santa habitar misteriosamente a casa de Mazarine, pintora talentosa com um passado obscuro e intimamente ligada a uma seita antiga que reverencia a arte e vive em busca de sua mártir desaparecida, que viveu há séculos nas terras do Languedoc.
O final é lindo e emocionante!


Trechos...

"Em poucos minutos, as ruas ficaram imaculadas. As pessoas corriam para se proteger, os guarda-chuvas se abriam, mas ela caminhava tranquila, observando as marcas que seus pés descalços deixavam. O chão tinha se transformado em mais uma tela a ser pintada.
Depois de tanto andar descalça, seus pés não doíam mais. Não sentia nem frio nem calor, tinha se imunizado contra as intempéries. Chegou ao final da avenida, e a silhueta escura do seu pintor rompeu a paisagem de névoa.
Lá estava ele, sob o Arco do Triunfo. Solitário e impenetrável, com sua gabardine preta pintada de neve e suas mechas brancas despenteadas, soltando baforadas de fumaça que se misturavam à bruma. Examinando-a fixamente com seu olhar quente e seus desejos contidos." (pág.95)


"No princípio será maravilhoso: uma chama, a lenha seca que arde, as fagulhas saltando, as línguas de fogo dançando unidas, subindo, subindo...
Um grande incêndio queimando, arrasando tudo. E depois, com o passar dos anos, logo surge a rotina, a lenha molhada que não pega, as chamas que já não sobem, o calor que não aquece... Os gritos de prazer transformados em razões. - Mazarine o ouvia em silêncio. Tinha vontade de dizer que aquilo não ia passar, que a cada dia ela inventaria prazeres novos, mas sabia que ele não acreditaria. - E começaremos a trocar nossos corpos pela filosofia, os gemidos pelos discursos, os suspiros pelas notícias... Agora, posso sentir você estremecer como um pássaro quando meu pincel a toca. Percebo sua paixão, e ela gera em mim outra paixão, inconveniente, estranha... cheia de luxúria e remorsos, e essa paixão dá origem a imagens. A alma conectada ao pincel, o sexo ligado à tinta... brotando com toda a sua força. - Cádiz passou a mão pela cabeça de Mazarine, aproximou-se e beijou sua testa. - Isso, minha pequena, você não pode saber porque não viveu." (Pág 175)


"Tudo parecia tranquilo. As ruas alegres respiravam o hálito morno da tarde. Voltou a ver o céu radiante de luz, a sentir os dedos do sol acariciando sua pele cansada, a ouvir a gritaria das crianças correndo atrás dos pombos. Os casais, depois de um longo dia de trabalho, se abraçavam e caminhavam com calma, comentando suas lutas e vitórias; não havia grandes discursos; a felicidade não foi feita para os pensadores. Na simplicidade do cotidiano, via mais sorrisos do que nos intelectuais. A grande discussão estava em que filme ver, em que varanda descansar e onde ir jantar. Tudo transcorria sem contratempos." (Pág 265)


"Toda noite saía para jantar, (...) Palavras, palavras ocas, frivolidades, farsas, discursos isolados carentes de sintonia. Não havia conexão possível com nenhum deles, já que aquilo que Sara desejava reencontrar era a harmonia. Uma paisagem exterior que coincidisse com seu interior. Um encontro de idéias


"Sabe de uma coisa, Mademoiselle? Nós humanos, complicamos nossa vida para dar um sentido ao fato de estarmos aqui. Os que escrevem expressam seu eu mais  obscuro em seus escritos, pois buscam a redenção pela palavra. Os que pintam tentam expressar seus pensamentos e sentimentos mais ocultos, aquilo que não ousam dizer, através de formas e cores. Os que guardam segredos no fundo querem ser descobertos. Os que odeiam simplesmente precisam de amor. Os que não falam querem ser ouvidos. Os que gritam buscam desesperadamente encontrar seu silêncio. Somos muito complexos..." (Pág 294)



Aqui mais um ponto de vista sobre O que falta ao tempo... A autora do blog sente que o tempo nunca é suficiente para acompanhar a produção literária. Eu concordo com você Nanda, de fato não é!

Um comentário:

Gio disse...

eU QUEROOO!

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